O FADO NEGRO DA HERANÇA COLONIAL PORTUGUESA, NA VOZ DE TRÊS GERAÇÕES DE MULHERES

Maria Patriarca, 65, Anizabela Amaral, 49, e Amália Santana, 24 anos, representam três gerações da presença africana em Portugal. Antes silenciada, hoje cada vez mais empoderada.

BY PAULA CARDOSO

September 13, 2020, 12:00 CET | Updated on October 12, 2020, 16:05 CET

Assim que pisou o chão de Lisboa, após 16 dias de viagem de navio, o arrependimento instalou-se. “Foi o pior dia da minha vida”, conta Maria Patriarca, recuando as memórias até Junho de 1974.

Recém-chegada a um Portugal que pouco antes, a 25 de Abril, despertava revolucionário, Maria encontrou o oposto da liberdade que o país celebrava. “Éramos escravas autênticas, sem hora para deitar, mas sempre para levantar. Eu só podia sair aos domingos, às 17h, e tinha de entrar de novo às 19h”.

O fardo de trabalho, à época comum para as empregadas internas que, como Maria, vinham das ex-colónias, aprisionou-lhe os sonhos durante dois anos e meio. “Chorava todos os dias, porque queria ir de volta para Cabo Verde”.

Além do dia-a-dia de reclusão, a hoje avó de cinco meninos recorda como tudo à volta a fazia sentir-se estrangeira. “Antes de chegar a Lisboa, o barco esteve quatro dias na Ilha da Madeira. Aí, era como se estivesse na minha terra. Havia água a correr no meio das plantas, tal e qual como em Cabo Verde”, diz, sem esquecer a desolação do primeiro contacto com a capital portuguesa. “Nunca pensei que isto era assim”.

Crédito da foto: ©Mario Rui Andre (Unsplash)

A resistência a marcas de desumanização

A primeira má impressão – especialmente impactante para quem vinha de uma aldeia da Ilha de Santo Antão –, agravou-se não apenas pela rotina de clausura, mas também pela continuidade de uma velha prática escravocrata e colonial: a desumanização do negro.

“Há muita coisa que se passou nessa altura, e que deixou marcas que a gente não consegue esquecer”, aponta Maria, hoje com 65 anos, de volta a um domingo de má memória. “Cheguei um pouco depois das 19h, porque tinha ido à Feira Popular com as minhas primas. A senhora estava na janela, viu-me lá de cima, mas não abriu a porta. Deixou-me a dormir na escada”.

O castigo assumiu contornos de tortura porque, do lado de fora do apartamento, Maria ia ouvindo passos no corredor, como se, lá dentro, alguém se estivesse a divertir com a violência.

“O 25 de Abril ainda era recente”, realça a cabo-verdiana, num esforço de enquadrar esse e outros episódios de humilhação que suportou. “Foi muito sofrimento até chegar aqui, mas aprendi a lutar. Se caio hoje, amanhã vou levantar”.

 

Liberdade em Portugal, sangue em Luanda

A filosofia de resistência também sobressai na história de Anizabela Amaral. Enquanto Portugal hasteava a bandeira de uma revolução pacífica, a família de Anizabela lidava, em Luanda, com os mais dolorosos efeitos colaterais dos cravos.

“Havia um contexto conspirativo. Aí de alguém que dissesse alguma coisa contra o regime”, observa a outrora criança, lembrando que a lógica repressiva e persecutória semeada pela PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado do Império ganhou raízes nos territórios colonizados.

“O meu pai foi baleado à porta de casa, no passeio, quando estava a sair do carro. A minha mãe sempre disse que foi um engano, que o meu pai não era o alvo, porque nesse dia estava a conduzir o automóvel de outra pessoa”.

A execução aconteceu numa Angola pré-independente, e forçou, em Junho de 1975, a mudança familiar para Portugal. Para trás ficou toda e qualquer ilusão de Justiça.

Apesar de o homicida ter sido identificado e detido, acabou solto, entre ameaças de novas mortes. “A minha mãe retirou a queixa contra ele, porque teve capangas connosco, na nossa casa, a avisar: ‘Se não tiras a queixa, nem tu nem as tuas filhas voltam a ver a luz a do dia”.

Anizabela, dois anos mais velha do que irmã, reconstitui a história a partir de conversas familiares e fragmentos de memórias ouvidas aqui e ali, sobretudo durante a infância e a adolescência.

Anizabela Amaral

 

Legado traumático e luta anti-racista

As partilhas sobre a tragédia acentuaram em Anizabela a convicção de que o pai, militar português mobilizado para Angola, teria algum envolvimento político, suspeita que se acentuou ao escutar referências à sua participação num comício.

Porém, a prova dos nove chegou à passagem pela faculdade. Desafiada por uma colega a militar num partido, a então estudante de Direito esbarrou na reacção materna. “Nem pensar! Já perdi o teu pai, não te vou perder a ti”.

Anizabela, hoje com 49 anos, reproduz as palavras que ouviu da mãe, como a derradeira evidência de que a vida paterna não se resumia a um negócio de compra e venda de automóveis.

“Aí tive a confirmação de que o meu estava politicamente envolvido. A minha suspeita é de que estaria ligado à UNITA [principal força da oposição em Angola], mas a verdade é que não me interessa propriamente saber em que lado da barricada ele se encontrava”.

Fosse qual fosse o alinhamento paterno, a história activa um forte sentimento de identificação. “Talvez seja por isso que dizem que saio ao meu pai”.

Ex-dirigente da associação SOS Racismo, Anizabela integrou o núcleo que, durante anos, pressionou tudo e todos para que a discriminação racial ganhasse força de lei. A conquista chegou em 1999 e, embora a jurista considere que falta reconhecer o crime de racismo na tipologia penal, sublinha a importância do enquadramento legal já existente.

“Temos uma contraordenação, temos um agravamento dos crimes no Código Penal quando a motivação é racial, mas há um caminho que está por fazer”.

Amália Santana

 

O novo fado dos afrodescendentes

Talvez os três filhos de Anizabela, que têm idades entre os 14 e os 8 anos, arregacem mangas para cumprir o percurso em falta. “São miúdos muito informados e por isso muito mini-activistas”. São também o novo corolário da diáspora africana: a geração dos afrodescendentes.

Filha de são-tomenses, nascida em Lisboa há 24 anos, Amália Santana encaixa nessa designação. Mas não deveria ser simplesmente portuguesa, sem quaisquer rótulos de desintegração?

As reflexões sobre a própria pertença não pesam na história desta estudante de Enfermagem, que divide a paixão pela Saúde com a veia musical. “Os valores que os meus pais me passaram é de que posso fazer tudo”, destaca Amália, que, recentemente, deu por si a pensar num condicionamento que nunca lhe tinha passado pela cabeça.

Tudo começou com a gravação, em vídeo, de um tema imortalizado por Amália Rodrigues, mundialmente aclamada como a “Rainha do Fado”. “Tinha visto que era a comemoração dos 100 anos [do nascimento] da fadista. Mesmo sem saber muito da sua história disse para mim: ‘Vou aprender este fado e vou cantá-lo’”.

Num único dia, Amália, que integra o coro de uma igreja e tem formação musical no currículo, agarrou nas notas e na câmara do telemóvel e registou a sua interpretação da canção “Foi Deus”.

A gravação, partilhada nas redes sociais no final de Junho, recebeu perto de 800 mil visualizações, em pouco mais de um mês de exibição, e demonstrou a importância da representatividade negra. “Só quando comecei a receber mensagens é que me apercebi que algumas pessoas não estavam à espera de ver uma negra a cantar o fado”.

Amália Santana

 

Identidade negra empoderada

Embora defenda que o seu vídeo “não deveria causar esse espanto”, a aspirante a enfermeira reconhece o possível efeito multiplicador. “Acaba por ser uma maneira de dizer o que sempre ouvi dos meus pais: ‘Nós podemos ser aquilo que quisermos, independentemente da nossa aparência exterior. Se queremos, fazemos”.

O legado de encorajamento, presente desde sempre na vida de Amália, é agora, mais do que uma herança de família, um património de alcance global. A par do impacto virtual da produção fadista, a estudante confia nos efeitos positivos da experiência de voluntariado que realizou, no ano passado, em São Tomé e Príncipe.

“Levei o meu violino na viagem, e estive com imensas crianças que nunca tinham visto um. Elas ficaram tão contentes com a esperança de desenvolver um projecto de música, que não podia deixar de lhes dar o meu apoio: Disse-lhes que podem fazer o que quiserem, desde que acreditem”.

Mais do que ensaiar um discurso, Amália deixou um donativo em flautas: “Vejo como um incentivo às nossas crianças, que não têm tantas oportunidades”. Que o diga Maria Patriarca. Se em 2019 Amália encontrou São Tomé e Príncipe sem muitas opções, em 1955, ano de nascimento da cabo-verdiana, a emigração surgia, demasiadas vezes, como o único destino possível.

Isso mesmo demonstram as estatísticas da imigração do então império: de 1955 a 1973, entraram em Portugal 87 mil cabo-verdianos, entre trabalhadores, estudantes, pessoas em trânsito para outros destinos e permanências de curta duração.

O levantamento, presente na publicação “Comunidade(s) cabo-verdiana(s): as múltiplas faces da imigração cabo-verdiana”, indica-nos também que, antes das Independências, as autoridades lusas, a exemplo de outros países europeus, iniciaram “uma política de recrutamento no interior do seu império colonial, para suprir necessidades de mão-de-obra na metrópole”.

Negro para trabalhar, não para integrar

A criação de uma força de trabalho a partir do ultramar concretizou-se através do envio das denominadas “cartas de chamada”, sobretudo a partir dos anos 60, altura em que o impulso da emigração portuguesa – como resposta às privações, guerra colonial e austeridade do regime fascista de Salazar – deixou Portugal carente de população activa.

“Os trabalhadores cabo-verdianos inseriram-se nos sectores da economia que, à época, mais carentes estavam de mão-de-obra, designadamente, no sector da construção civil e obras públicas e, de forma maioritária concentraram-se na Área Metropolitana de Lisboa”, lê-se em “Comunidade(s) cabo-verdiana(s): as múltiplas faces da imigração cabo-verdiana”.

Na mesma publicação, produzida em 2008 pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural – entretanto rebaptizado Alto Comissariado para as Migrações –, assinala-se igualmente que, embora a presença de migrantes cabo-verdianas ainda fosse residual, “já se verificava uma especialização no trabalho doméstico”, a dias ou como empregadas internas.

De volta a esses tempos, em que o corpo negro era reconhecido como necessário, porém tratado como estranho e invasor – “às vezes estava a passar na Avenida de Roma, em Lisboa, e as pessoas paravam e ficavam a olhar para mim” –, Maria não hesita no balanço: “Eu não tive oportunidade nenhuma”.

Para começar, a cabo-verdiana conta que nem sequer foi à escola, algo comum nas ex-colónias lusas, onde o índice de analfabetismo atingia entre 90 e 95%. “Isto representa, aliás, um dos grandes crimes perpetrados pelo colonialismo português, o qual descurou completamente o sistema escolar e, com isso, manteve as populações africanas afastadas de toda e qualquer possibilidade de obterem instrução escolar”, assinala Paulo Alves Pereira, no trabalho “O Fim do Império Colonial Português e as suas consequências”.

Quarenta e cinco anos depois da proclamação das Independências dos países africanos ocupados por Portugal, em 1975 – excepção feita para a Guiné-Bissau que se tornou soberana em 1974 –, o lastro da subjugação persiste. Não apenas na realidade educativa das ex-colónias, mas igualmente na velha metrópole, onde se continuam a reproduzir lógicas segregacionistas.

O problema é reconhecido no relatório sobre “Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-racial em Portugal”, apresentado no ano passado na Assembleia da República. Segundo o documento, essa marginalização é alimentada pelo sistema de ensino, que segrega alunos afrodescendentes e ciganos, tanto na composição de turmas como na identidade das escolas.

O Presidente de Portugal Marcelo Rebelo de Sousa no Restaurante O Coqueiro

O Presidente de Portugal Marcelo Rebelo de Sousa no Restaurante O Coqueiro e Maria Patriarca e o Primeiro-Ministro de Cabo Verde José Ulisses Correia e Silva

Cachupa com honras presidenciais

A prática salta à vista em estabelecimentos do concelho da Amadora, onde o bairro da Cova da Moura nasceu e cresceu clandestinamente. Aqui, na periferia de Lisboa, Maria Patriarca vive, criou três filhos e acompanha a educação dos netos, sem perder de vista a gestão do próprio negócio: o Restaurante O Coqueiro.

O espaço, afamado pela cachupa, já recebeu o Presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e o seu homólogo de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca. “O Presidente Marcelo veio duas vezes. Comeu sempre a cachupa com arroz, porque diz que o nosso arroz é de outro mundo. Também experimentou o bife de atum”, aponta.

A popularidade do menu do Coqueiro, entregue ao tempero de Maria, torna as paredes do restaurante pequenas para documentar todas as poses ilustres que por lá vão passando. Além das figuras de Estado, a casa atrai outras personalidades mediáticas, como Dino d’ Santiago, músico luso-cabo-verdiano que tem no currículo colaborações com Madonna.

O desfile de estrelas ajuda a abrilhantar as potencialidades da Cova da Moura, e a ofuscar estereótipos de má vizinhança, há muito colados à população do bairro, de maioria negra.

Ódio que mata

Habituada a descolar esses e outros rótulos, Anizabela Amaral reinventa-se no combate às discriminações. “Quando saí da SOS Racismo, vi que tinha tantas pessoas à volta que necessitavam do meu apoio, mesmo a nível jurídico, que percebi logo que iria continuar o meu activismo”.

Desde familiares e outras pessoas próximas, a amigos de amigos, a rede de suporte tecida pela jurista não se esgota no combate à discriminação racial, mas encontra nele a principal frente de intervenção. “Com tudo o que vivemos lá dentro, é impossível a SOS Racismo sair de dentro de nós”, defende a ex-dirigente, acrescentando que a experiência a retirou de um lugar de ingenuidade.

“Lembro-me que antes de entrar na associação achava que eram todos um bocadinho fundamentalistas, que assumiam posições exageradas, por exemplo nos comunicados de imprensa. Por isso, disse para mim mesma: ‘Vou ser uma pessoa consensual ali, vamos tentar fazer pontes, criar alianças, arranjar apoios, patrocínios, vamos espalhar a mensagem, vamos chamar gente branca, vamos tentar envolver o máximo possível de pessoas”.

A estratégia anti-racista de Anizabela demorou apenas dois meses até embater de frente num quotidiano de macro-agressões. “Todas as denúncias que nos chegavam eram de tal forma graves e doentias que sermos moderados naquele contexto não era opção”.

A importância das posições de força tornou-se ainda mais evidente com o assassinato, em 1995, de Alcindo Monteiro, português negro espancado até à morte por um grupo de skinheads. O crime sentou 17 arguidos no banco dos réus, julgados por homicídio e ofensas corporais, mas aliviados da acusação de genocídio, abandonada pelo Ministério Público.

Onze dos acusados foram punidos com penas entre 16 anos e meio e 18 anos de cadeia, enquanto os outros cumpriram penas entre três anos e meio e quatro anos e nove meses de prisão. Na leitura da sentença, o racismo, o nacionalismo, o fascismo e o nazismo dos homicidas ficou cabalmente demonstrado.

“Salazar e o seu regime são apontados como um modelo a seguir. A vertente racista está sempre presente. Apelam à superioridade da raça branca considerando a raça negra como raça inferior. Em termos gerais, de acordo com uma política a que chamam “racialismo” não admitem a mistura de raças; são contra a imigração para Portugal de indivíduos de raça negra, nomeadamente os originários das ex-colónias. Defendem a expulsão do território nacional de todos os indivíduos de raça negra e, para atingirem esse fim e em nome da “Nação” e da “superioridade da raça branca”, acham legítimas todas as agressões contra esse grupo de indivíduos.”

A educação que salva

Vinte e cinco anos se cumpriram desde a morte bárbara de Alcindo Monteiro, outros assassinatos ocorreram pejados de indícios de motivação racial – incluindo a recente morte do actor Bruno Candé –, mas a negação do racismo permanece uma prática comum na sociedade portuguesa.

“Não podemos desarmar”, sublinha Anizabela, preocupada com a ofensiva populista das ideologias de extrema-direita. Firme na luta contra o ódio, a jurista nota que foi sendo impelida a agir: “A minha vida foi-me mostrando que precisava de me envolver”.

Primeiro numa estrutura associativista, que deixou entre desafios de maternidade, agora na educação dos filhos e nas denúncias de casos de discriminação que publica nas redes sociais, Anizabela lembra que só confrontando abertamente as estruturas que sustentam o racismo é possível perspectivar a sua desintegração.

“A partir do momento em que fui mãe, e tive o assunto a chegar-me a casa, com o meu filho de três anos a pedir-me para pintar a cara de branco, tornou-se evidente que tinha de me fortalecer”.

Pouco mais de uma década depois desse episódio, ultrapassado com muita pedagogia, Anizabela conta que renova forças em leituras, debates e partilhas de experiências com outras pessoas racializadas. “Percebi, mais tarde, que o meu filho apenas me queria proteger, porque observou, na escola, que as pessoas castanhas eram tratadas de forma diferente, para pior”.

As variações cromáticas na família, resultantes da diversidade étnica dos progenitores – o marido de Anizabela é português branco –, cedo despertaram a luso-angolana para choques identitários.

“Conhecia muito bem a história de uma amiga que, quando levava o filho de 13 anos à escola, deixava-o no início da rua porque os amigos não podiam ver que a mãe era negra. Quando o meu filho apareceu com aquela conversa, a implorar que pintasse a cara de branco, disse ao meu marido que isso não iria acontecer comigo, não iria deixar de acompanhar o meu filho à escola por ele ter vergonha”.

Choques de pele para o currículo

O sentimento de rejeição da pertença africana, que Anizabela conseguiu manter fora de casa, é indissociável da propagação de um ideal branco, que começa logo na educação pré-escolar.

Sem materiais que promovam e celebrem a diversidade, o imaginário colectivo português continua a associar a cor de pele mais escura a uma identidade estrangeira, percepção agravada pela não recolha de dados étnico-raciais.

Mesmo sem nunca ter vivido uma situação gritante de discriminação racial, Amália Santana, mais nova de três irmãs, prepara a entrada no mercado de trabalho com cuidados redobrados. “Espero não ter de lidar com alguém que recuse ser atendido por mim”, antecipa a estudante de Enfermagem, consciente dos obstáculos que os profissionais negros enfrentam.

 “Tenho uma amiga médica que trabalha num hospital privado, e que já teve casos em que os doentes não quiseram ser atendidos por ela, apenas por ser negra”, lamenta. Apesar de não entender as resistências – “para exercer todos têm de ter formação” –, Amália admite ceder.

“Se calhar, enquanto recém-licenciada, vou aceitar que alguém não queira ser atendido por mim, mas, com alguns anos de trabalho posso começar a responder: ‘Se não quer ser atendido por mim, então não está doente, não precisa de ajuda’”.

Maria Patriarca e o Primeiro-Ministro de Cabo Verde José Ulisses Correia e Silva

Maria Patriarca na cerimônia de premiação para mulheres empreendedoras na Europa e África, em Lisboa, Portugal

 

A libertação pelas palavras

O desafio de emancipação, que Amália antevê entre aspirações típicas dos 24 anos, encontra um paralelo de moldes revolucionários na história da sexagenária Maria.

Antes de assentar morada no Restaurante O Coqueiro, a cabo-verdiana teve de se libertar do ambiente de clausura e opressão que enfrentou à chegada a Portugal. “Para sair daquela casa, tive de fazer malcriação, ser malcriada mesmo. Até me ofereceram Polícia e tudo”. Impassível diante das manobras de intimidação, Maria passou a trabalhar para outra família, e, pela primeira vez desde a partida de Cabo Verde, descobriu o significado de folgas e férias.

De direito em conquista, sem nunca desistir dos objectivos, a cabo-verdiana ainda mobilizou energia para aprender a ler e escrever. “Era um desejo que tinha. Toda a minha vida não desejava mais nada: queria saber ler qualquer coisa”.

O sonho da instrução primária cumpriu-se “há uns aninhos”, entre a preparação de almoços e jantares no Coqueiro, e a gestão de responsabilidades familiares. “Às vezes fico a pensar na minha vida, e nem eu sei como é que foi. Posso apenas dizer que fui fazendo as coisas, não forcei nada”.

A caminhada, que transformou Maria numa mentora para outras mulheres da Cova da Mora, encaminha-se para a aposentadoria. “Se calhar nem vou receber reforma, mas tenho o sonho de deixar de trabalhar daqui a uns dois anitos, ter saúde, e ir passear com o meu marido, porque adoro viajar”.

Seja qual for o destino, a cabo-verdiana lembra que tem um passado de razões para manter o optimismo. “Antigamente éramos pretas. Pretas mesmo. Não éramos negras, que é uma palavra bonita. Erámos só pretas”, reforça, de foco apontado para a mudança: “Agora já somos senhoras. Lutámos para sermos chamadas pelo nome”.

Maria Patriarca, Anizabela Amaral, Amália Santana. Todos os nomes importam. Todas as histórias contam.

Esse artigo é apoiado pelo projeto piloto Stars4Media.