FORA DA CAIXA
ENTREVISTA COM DELSO BATISTA
Uma conversa com o psicólogo, pesquisador e organizador comunitário Delso Batista do Queer Tropical sobre as experiências de ser um homem afro-brasileiro, migrante, LGBT em Portugal.
BY GERALDO MONTEIRO E LAINE BARCAROL
September 13, 2020, 12:00 CET | Updated on October 12, 2020, 12:38 CET
Lisboa, a capital de Portugal, é uma cidade vibrante e internacional e uma casa para muitas comunidades de todo o mundo.A composição e o clima da sociedade no Portugal contemporâneo estão ainda fortemente ligados à extensa história colonial do país, que se estendeu por mais de seis séculos e desempenhou um papel significativo no comércio transatlântico de pessoas escravizadas.
O jornalista e cineasta do Black City Stories Geraldo Monteiro encontra-se com o psicólogo, investigador e organizador comunitário Delso Batista, para falar sobre as realidades vividas por migrantes e os estereótipos habitualmente associados às experiências dos migrantes.
Partilhando e refletindo, a partir das suas próprias experiências como homens negros, LGBTIQA+ e migrantes brasileiros em Portugal, eles analisam os mecanismos do racismo, capitalismo, classismo e homofobia, e mostram como navegam vivendo nas terras complexas de um Portugal pós-colonial e reconhecem as vitórias nos seus caminhos escholhidos.
O campo profissional de interesse de Delso Batista é a psicanálise relacional e os impactos de gênero e migração na saúde mental. É também o co-fundador da associação Queer Tropical, apoiando pessoas LGBTIQA+ do Brasil e outros migrantes que vivem em Portugal.
Créditos de vídeo
Fotografia, Entrevista, Edição: Geraldo Monteiro
Direção de Fotografia: Laine Barcarol
Introdução por Black City Stories
Este vídeo é apoiado pelo projeto piloto Stars4Media
TRANSCRIÇÃO
“Eu sempre gostei muito de deixar a minha marca, no meu modo de estar, nas relações que estabeleço, principalmente quando eu fui cada vez mais ganhando maturidade, quando eu me vi enquanto sujeito, negro, imigrante, homossexual. Nesse contexto, né?”
Black City Stories Entrevista
Delso Batista Psicólogo
Delso Batista: Como psicólogo, uma das coisas que eu estudei, dentro do campo da Psicanálise, era muito a questão de que para fazer Psicanálise você tinha que ter a mesma fluência dos pacientes, de quem você acompanhava.
Uma das minha vitórias nesse sentido foi o meu primeiro emprego ter sido dentro da minha área. Porque a retórica, muitas das vezes, quando você se coloca nesse caminho de imigrante, é de que você vai ter que aceitar sub-trabalhos, ou se colocar em situações de marginalização laboral, porque num outro contexto, no novo mundo, você não vai encontrar isso, uma porta aberta para você trabalhar se você tem escolaridade ou naquilo que você deseja fazer.
Muitas das vezes eu era confrontado com questões do tipo “Ah Delso, você se comporta de uma maneira muito europeia para ser um brasileiro!” é como se fizesse ali um “tilt” qualquer…
Geraldo Monteiro: O que é “ser europeu” e o que é “ser brasileiro”?
Delso Batista: Exato! E eu ficava curioso: “mas e o que é este brasileiro no imaginário dessas pessoas?
Geraldo Monteiro: E quem é esse brasileiro negro também, no imaginário das pessoas, né?
Delso Batista: E aí eu fui entendo ao longo do tempo, eu fui entendendo que esse imaginário era uma imaginário de alguém que não tinha escolaridade, que não tinha erudição, que tinha algum traço transgressor que, de alguma forma, ou se enquadraria no perfil de prostituição ou de criminalização, ou de crime.
Coisas que eu não me reconhecia, coisas que eu não me via, então parece sempre um convite constante à marginalização, né?
E quando você não ocupa esse lugar, quando você não está agindo desse modo isso gera um tipo de conflito.
Geraldo Monteiro: Um estranhamento, né?
Delso Batista: Um estranhamento, um desconforto e mais do que isso, né? Gera as vezes um fetichismo, porque você passa a ser aquele perfil daquele negro que se veste bem, que fala bem, que tem uma postura diferente. Então, quando as pessoas se aproximam de você, muitas das vezes elas vêm com esse tipo de questionamento, pra perceber: “mas de onde é que você veio?” O que você fez da sua vida? Qual é a sua escolaridade? O que você pretende aqui?”
Geraldo Monteiro: Inclusive sobre a gente, homem negro na comunidade LGBT, tem muito essa hipersexualização dos nossos corpos né, que a gente está preparado para ser a máquina de sexo.
Delso Batista: Não só, eu fui entender também que era negro, aqui.
Geraldo Monteiro: Por quê? No Brasil não tinhas essa percepção?
Delso Batista: A minha percepção não era tão aprofundada dessa forma, porque a minha comunidade no Brasil é uma comunidade diversa. É uma comunidade negra, é uma comunidade que, mesmo com pessoas brancas neste meio, não havia esta diferenciação, padrões de expectativa nas relações.
Aqui eu fui ver que isso era um elemento marcante. A partir de que, primeiramente, você é um corpo, e aí o seu corpo ele é descrito, o seu corpo, concretamente, ele é revisto, analisado para perceber onde é que ele se encaixa, onde é que ele se enquadra. Porque à principio, deve se encaixar em algum tipo de estereótipo ou de caixinha, né, de enquadramento.
E o corpo negro muitas vezes cai nessa retórica, justamente da hipersexualização, aonde o seu corpo é um corpo monstruoso, porque detém de capacidades e de órgãos que são completamente fora do normal, completamente fora do comum.
E também aqui é mais um convite para que você tenha o seu corpo desejado como objeto, né. E aí você fica nessa contradição de que você é um corpo, e por isso não tem subjetividade, não tem essa dimensão da sua experiência e personalidade, isso não esta convidado a essa experiência e ao mesmo tempo você é um capital. Um capital a ser…
Geraldo Monteiro: “Explorado”
Delso Batista: Explorado! E aí completamente todo o resquício pós-colonial que a sociedade portuguesa se debate ainda nos dias de hoje, né?
Eu percebo hoje em dia que nesse domínio a sociedade portuguesa escolheu um campo de negação, né?
A negação de Portugal como um país que estruturou o racismo como uma instituição, que estruturou o racismo como um processo de desumanização de pessoas racializadas e que estende esse processo dominatório para várias outras identidades, né?
E aí falamos dos grupos das pessoas LGBTQ+, falamos das mulheres, falamos dos ciganos, falamos de qualquer pessoa que é destituída dessa humanidade porque não se enquadra nesse perfil branco, eurocêntrico…
Geraldo Monteiro: CIS, heteronormativo…
Delso Batista: Exatamente. Então a grande contradição enquanto homem negro, LGBT imigrante, aqui é perceber o quanto a sociedade portuguesa espera de mim uma postura próxima daquilo que eles entendem como um imigrante deve se comportar: dócil, uma pessoa que não discute, que aceita, que não cria conflito, que corre atrás de trabalhar mas aceita qualquer tipo de trabalho, não esta para escolher. E me ver numa postura de ter as minhas expectativas, os meus desejos, as minhas vantagens, e que nem sempre isso vai de acordo.
Há uma serie de organismos protetivos no contexto português, em Lisboa, e que dão de alguma forma essa segurança para que você possa se organizar. Não é? Usar do serviço de saúde, coletivos de suporte, eu também faço parte de um coletivo de suporte que é o Queer Tropical, que faz o papel de dar suporte, para pessoas LGBTQ+.
Geraldo Monteiro: Como é o suporte? Uma forma de acolhimento?
Delso Batista: Sim, atualmente a gente está trabalhando mesmo no campo das mídias sociais, onde a gente faz, digamos, a triagem para as demandas. A gente nasceu com a vitória infame do Bolsonaro no Brasil, no mesmo momento em que ele venceu. E a ideia era dar informações para as pessoas que sentiam-se ameaçadas, – e são muitas! – com esse evento, né, e foram vários pedidos que chegaram nesse sentido, onde pudessem buscar informações do que fazer se pretendessem encontrar caminhos pra imigrar e procurar outra forma de viver que não fosse um pais como Brasil neste momento.
Tenho esse atravessamento de ser LGBT, o que ainda normalmente coloca essas pessoas em outra situação de vulnerabilidade, um medo constante, um evitamento da realidade por questões históricas, né, de saber que pelo fato de você ser gay, de você ser lésbica, de você ser trans, você pode experimentar qualquer tipo de violência ou discriminação. Então é normal que essas pessoas se retraiam e não tenham o mesmo tipo de experiência comunitária, como os heterossexuais, e afins.
Então acho que a ideia do nosso coletivo é alargar esse tipo de entendimento, para que a população migrante LGBTQI+ tenha uma fonte de suporte que possa confiar, procurar informações relevantes em todos os campos, psicológico, jurídico, para encontrar uma casa para viver, para procurar trabalho.
Geraldo Monteiro: Às vezes, os nossos corpos são tão marginalizados que a violência chega a um extremo, como foi o caso do Bruno Candé, um ator de Portugal que foi assassinado simplesmente pelo fato de ser negro.
E acho que isso reforça muito a importância dos coletivos, de trazer informação e entrar em diálogo com a sociedade. Mas será que é suficiente?
O que a gente pode fazer mais? E o que os não-negros também, os brancos, como é que eles participam dessa luta? É um papel em que tem que estar em conjunto, né?
Delso Batista: É. É um encontro possível, na verdade. Como é que a gente pode fazer esse encontro possível? Porque a própria dinâmica de racismo é uma dinâmica que desumaniza, e por desumanizar coloca a branquitude no patamar superior ao da negritude, e isso impossibilita um encontro de empatia, de afetividade e esse é um problema estrutural do racismo e em Portugal não é diferente.
Nesse caso do Bruno, acho que o mais flagrante é justamente esse questionamento que vem a seguir da mídia, dos partidos, de direita e extrema direita, uma retórica constante, de revisitar a história e viver essa coisa de luso-tropicalismo para dizer que Portugal não é uma país racista.
E isso, por um lado é muito triste, ver pessoas brancas se colocando nesse tipo de dinâmica, porque elas não estão nem a se ouvir e nem a ouvir outras pessoas brancas. Muito menos as vozes de coletivos ou de pessoas racializadas, né. Então acaba por ser um encontro impossível, já começa aqui.
Depois, obviamente o papel de coletivos, da sociedade civil e dos coletivos negros é mais que necessário. É um caminho inicial, para que se possa abrir esse diálogo, só que acaba por ser também uma conversa onde você fala para si mesmo, porque esse encontro de o outro ouvir essa experiência que acontece da maneira repetida, né?
Aconteceu nos Estados Unidos com George Floyd, aconteceu no Brasil, acontece aqui, e a dinâmica é sempre a mesma coisa. Alguém que é capaz de desumanizar o outro de tal forma, por causa da sua cor de pele, que o permite retirar a vida dessa pessoa, sem qualquer tipo de justificativa, ou por uma justificativa completamente racista.
Falar dessa questão do racismo estrutural é importante. A gente situar uma série de questionamentos necessários e importantes para se fazer, que são dos próprios movimentos ou das próprias pessoas racializadas, em primeiramente se verem como pessoas racializadas e encontrarem maneiras de compreender e de perceber a sua própria trajetória histórica e a sua questão ancestral e contextual.
Para perceber essas limitações e encontrar formas de diálogo e de encontro com pessoas que, primeiramente tem esse interesse e percebem a necessidade de discutir essas questões e tê-los como parceiros possíveis, tá, mas não depender disso.
No sentindo em que a voz do povo negro não pode ser mais calada, não pode ser mais apagada, como foi de maneira tão sistemática e estrutural como foi ao longo desses séculos.
As pessoas muitas vezes se veem fazendo o racismo ou discursando racismo sem ter completa consciência disso. Então é um trabalho extensivo, um trabalho complexo, mas que não está também apenas nas mãos dos negros e dos coletivos.
Os brancos devem encontrar forma de responsabilização. Os brancos devem encontrar forma de se colocar numa postura de primeiramente ouvir, se colocar numa postura de tentar formas de entendimento, de proximidade e isso também é um dos desafios.
Muitas vezes as pessoas acham que pela lei do seu direito da expressão, que é você ter nos dias de hoje a possibilidade de falar o que pensa ou o que sente de qualquer forma. Ter que ouvir o outro falar de uma experiência aqui que o afeta negativamente, parece ser uma forma de censura da expressão, de expressividade e não é nada disso, não estamos falando disso.
Nós estamos falando de um sistema que mata, um sistema que desumaniza, e que remove, que retira, que extirpa de pessoas, um quesito que deveria ser transversal que é a humanidade, tá?
E o racista, quando ele faz o racismo ele também se remove da humanidade, ele se exila da humanidade. O racismo acomete pessoas racializadas de sofrimento mental e sofrimento físico. Mesmo de maneira invisível.
Há vários estudos que vão mostrando, por exemplo, o quanto pessoas negras são muito suscetíveis a determinados tipos de doenças, cardiovasculares, depressão…
Uma das variáveis que estão aqui, mas que não são amplamente discutidas é justamente o racismo que está intrincado com o capitalismo. O racismo não funciona sem o capitalismo, e vice-versa. É quase uma religião, que é adorar essa questão de você alcançar esse lucro e tem a sua libertação através daquilo que você produz, mas que não é a mesma coisa para todas as experiências.
A pessoa negra não vem com uma bagagem, muitas das vezes, comparativamente à que uma pessoa branca tem, para poder ter as mesmas oportunidades e chances no contexto de trabalho, de estudo. Então a invisibilidade é a problema que acomete muitas pessoas negras em contextos que eles não são normalmente esperados.
Geraldo Monteiro: E no fim das contas, valeu a pena vir pra Portugal?
Delso Batista: Valeu sim. Um terço da minha vida eu passei aqui praticamente. Esse um terço foi um terço de muito crescimento, maturidade e entendimento, quer de mim como pessoa, quer do contexto onde estou.
Muitas portas se abriram, e não só porque me deram oportunidades, mas porque eu busquei essas oportunidades. Outras ainda não consegui ultrapassar, mas eu vou chegar, eu vou conseguir.
Mas eu sinto que obviamente foi uma experiência que me propiciou um crescimento em diversos níveis. De hoje poder me olhar e me ver como uma pessoa negra, imigrante, LGBT, ativista, psicólogo, e que tem propósitos e objetivos e que faz pela sociedade em que estou no momento, algo que pode ser transformador e que pode ajudar a desenvolver cada vez mais essa sociedade.
Então, eu acho que é uma troca, às vezes não muito justa, mas é uma troca e eu sinto que eu tenho constituído muito com isso. Então sim, valeu bastante a pena.